quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Zerando a Redação

Saiu como manchete a notícia de que mais de meio milhão de estudantes tiraram nota zero na redação. Não deveria gerar tamanha surpresa esse resultado. Ter dificuldades na elaboração de um texto é coisa antiga, por certo, afinal a tarefa não é assim tão simples. A novidade é apenas o quanto se está agravando, mas isto também já era de se esperar. São os efeitos agora visíveis do idioma internetês, da forma como as pessoas se comunicam através da internet e das novas mídias sociais. Num contexto de comunicações abreviadas por frases formadas apenas por consoantes ou idéias transmitidas por figurinhas está se tornando raro o domínio da língua portuguesa.
O mundo, quase todo, aderiu em massa às novas formas de comunicação. Salvos os que continuam a ler, pensar e escrever normalmente, apesar de usarem as novas mídias, as pessoas que só se comunicam por abreviações inventadas estão perdendo a capacidade de se expressarem verbalmente. E, pior, perdendo a capacidade de refletirem, pois isso demanda tempo e não há tempo a perder. Precisam estar conectadas a tudo simultaneamente. A prosa perdeu enredo e as palavras foram telegraficamente suprimidas; as opiniões resumidas em curtidas e não curtidas. No reinado das imagens, o verbo perdeu lugar. Compartilham-se fotos, muitas fotos. Sempre sem legenda, sem história contada, sem contexto. Uma imagem vale mais do que mil palavras, essa parece ser a ordem de nossos dias. Os telefones com os quais antes se conversava em situações excepcionais foram substituídos por celulares e estes se tornaram smartfones, com total conexão a tudo, menos ao encontro de vozes e a transmissão de conversas. Os aparelhinhos podem trazer mil programas, mas não parecem estar favorecendo a comunicação e o entendimento entre as pessoas. Fala-se menos, escuta-se cada vez menos. E as mensagens estão cada vez mais primitivas, abreviadas à imperativa urgência da comunicação instantânea. Foram-se as dúvidas entre dois ésses e cedilhas. Escreve-se de qualquer jeito e se atira na rede o que vem na cabeça, sem passar por revisão ou pelo sensato crivo da reflexão.
Como tudo que não se usa, a linguagem com toda sua riqueza e variedade vem sendo atrofiada. Por falta de uso, vai se perdendo a capacidade de pensar, refletir, escrever e até falar. Num cruel paradoxo, a mais alta tecnologia está tornando primitiva a comunicação escrita, subtraindo-a de recursos, exterminando sua riqueza formal e sua capacidade expressiva. Saem de cenário as palavras e suas figuras, entram apenas os personagens estáticos dos selfies, sempre sorridentes, sempre lindos, sempre felizes, aparentemente. Nesse cenário, o meio milhão de notas zero na redação do Enem é apenas a ponta do enorme iceberg de conseqüências da desconstrução da linguagem.

Se o mundo acabasse agora e mais adiante chegassem outros moradores, juntando os cacos das fragmentadas mensagens dessa época registradas na internet, teriam eles grandes dificuldades de entender essa nossa civilização. Talvez pensassem que éramos todos seres linguisticamente muito primitivos. E não será isto o que coletivamente estamos nos tornando?
                                 (publicada no Jornal Agora em 24/01/2015)

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