quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A Grande Herança

Há quem sonhe encontrar o tesouro da vida guardado em dourado baú deixado por algum ancestral ou passe sonhando receber o espólio de um parente próximo que, imaginam, seja muito rico. Normalmente, essas são situações enganosas: ou o dinheiro nunca chega, ou nem é tanto e ainda precisa ser dividido por mais gente. Há outros que dedicam sua efêmera passagem a amealhar patrimônio. Juntam muitos bens para deixar amparada a existência de sua descendência.  Esse pensamento talvez explique a ganância, a usura e outras atitudes doentias relacionadas ao dinheiro.  Só a necessidade de viver várias vidas – através de outras pessoas – justifica juntar desmesuradas fortunas.
As heranças, via de regra, trazem problemas, pelo menos no que trata de bens materiais. Riqueza que cai assim do céu, vinda em decorrência da morte de outra pessoa, parece ser pesada demais. Há um sentimento de culpa inerente ao recebido, assim diz a Psicanálise. O patrimônio herdado queima nas mãos, precisa ser logo vendido, trocado, pulverizado em coisas passageiras. Daí uma frase antiga, mas sempre atual: pai rico, filho nobre, neto pobre. Poucos são os herdeiros que valorizam e preservam o que recebem, salvo se o espólio material vier acompanhado de um baú de muitas boas memórias e sábios ensinamentos, como acontece em gerações sucessivas que tocam e aprimoram negócios familiares.  Essas são abençoadas pela transmissão de ideais de vida, de valorização do trabalho e da família, algo freqüente na cultura italiana e alemã.
A grande herança, entretanto, é imune a impostos, a cobiça, a ódios, a crimes e todos a recebem, embora a maioria nem se dê conta. Todos recebemos ao nascer uma bagagem genética, uma coleção de genes herdados de pai e mãe e de seus ancestrais.  Essa cota que a cada um cabe é única, como cada filho é único, mesmo os que sejam gêmeos. Nesta valiosa bagagem podemos ser aquinhoados com fatores de proteção a algumas doenças graves, para nossa maior sorte, ou ao contrário poderemos vir marcados com a tendência a sofrer certos agravos de saúde. Por conta dela seremos mais ou menos belos, inteligentes, altos, etc. Também podemos descobrir alguns talentos inatos, reconhecidos nos parentes diretos ou vindos de gerações muito anteriores.  Entretanto, qualquer que seja a carga genética que nos tenha sido atribuída, ela não é um destino: poderemos reverter tendências negativas, do mesmo modo como poderemos não aproveitar as habilidades geneticamente recebidas.  Todo esse capital inato da herança genética é feito por uma transmissão involuntária, resultado de combinação de fatores aparentemente aleatórios que a uns protege e a outros ameaça.
Além da saúde, inteligência ou formosura que nos tenham sido destinadas pela genética, a maior de todas as fortunas que poderemos herdar só pode vir pela via da transmissão, pelo ensinamento, pelo exemplo, pelo modelo. Essa realmente é a grande herança, a mais valiosa e a única que podemos voluntariamente receber dos ancestrais ou deixar aos descendentes.

Escrevo esta crônica em grata homenagem a minha mãe, Iara, que completará 90 anos nos próximos dias. Não herdei sua beleza e nem seus olhos azuis, mas da poetisa recebi certa facilidade com as letras, grande legado de ensinamentos de vida e, quiçá, a longevidade?
  (publicada no Jornal Agora - em 11/07/2015)

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