quinta-feira, 3 de abril de 2014

Modo de Fazer

Em meus distantes tempos acadêmicos, descobri o sabor que se pode tirar de um mísero café instantâneo. Minha melhor colega de estudos era mestre no café batido. Quando o cansaço invadia a madrugada de estudos ela pegava uma xícara, colocava uma colher de café instantâneo, açúcar e algumas pitadas de água: batia, batia, batia, enquanto prosseguíamos sem a recitar a matéria estudada. Quando surgia um creme cor de café com leite, a colega o distribuía nas xícaras, colocava água quente e sorvíamos o mais doce energético, espantando o sono e revigorando o cérebro. O café nosso de cada dia ou a receita do mais simples dos bolos podem resultar muito diferentes conforme o modo como sejam feitos.
Nas situações mais delicadas da vida acontece o mesmo, o modo de fazer as coisas faz toda a diferença. Gestos simples podem se revelar mágicos ou desastrosos; palavras banais podem amparar ou produzir tragédias, transformando cenas cotidianas em momentos difíceis de esquecer, para o bem ou para o mal. Na semana que passou, por exemplo, a tripulação de um avião levou ao pé da letra orientações de segurança e, desinformada, agiu desastradamente com uma família. Num misto de insensibilidade e falta de senso, a equipe exorbitou no trato a uma criança com problemas de pele. A situação resultará em processo judicial e só não causará mais danos à criança vitimada pelo apoio solidário que lhe foi oferecido. Tudo poderia ter sido diferente, bastava uma pequena dose de bom senso evitando constrangimentos desnecessários.
Para nossa boa sorte, há situações em que ocorre exatamente o contrário: bons modos capazes de reverter situações adversas. Em minhas lembranças guardo a recordação de uma oficial de justiça com quem trabalhei na Justiça do Trabalho. Na época eu era uma jovem estudante universitária e ela me parecia muito mais velha do que deveria ser. Quando essa oficial assumiu sua função foi uma revolução no cumprimento dos mandatos. Até ali tudo era feito como devido, com as formalidades e desumanidades de estilo. Quem devia era cobrado, executado e pronto. Nada de excessos ou irregularidades, apenas o restrito cumprimento formal da lei. Pois chegou a nova oficial e tudo mudou radicalmente. Aquela senhora, que usava e abusava de diminutivos, tratava carinhosamente a todos e conseguia angariar simpatia mesmo dos mais renitentes devedores. Além do trato afetivo com que lidava com as pessoas, dava-se ao trabalho de sentar e gastar seu tempo buscando soluções no complicado orçamento dos executados. Caso possivelmente único na história das execuções judiciais: com equações financeiras, longa conversa e muitos cálculos, o devedor se convencia de que poderia pagar e, para pasmo geral da repartição, na maioria dos casos as mais difíceis dívidas eram cumpridas. Mesmo nos casos de penhora de bens aquela gentil criatura era capaz de tornar o ato menos dramático, encontrando soluções mais dignas. Quando de sua transferência para sua cidade de origem, não foram poucos os devedores que lamentaram sua perda. Ela fazia falta a todos: aos que esperavam ver o dinheiro que lhes era devido e aos que, pelos revezes da vida, de negociantes e patrões haviam se transformado em reles devedores da Justiça.
Cito o caso para mostrar que mesmo a complicada profissão de Oficial de Justiça, de cobrador judicial, pode ser executada de tal modo que amenize a dureza da função, revestindo de humanidade situações constrangedoras. Infelizmente, muitas vezes o que se vê na vida atribulada de todos os dias é exatamente o contrário: gente que desenvolve profissões humanísticas de forma fria, formal, burocrática. Pessoas que agem com completa indiferença aos dramas humanos que lhes passam à frente. Na esfera pessoal também sobram exemplos de maus modos de agir. Há tanta gente que esqueceu a noção de gentileza, de tolerância, de generosidade; gente que não sabe fazer agrados, mas abusa da capacidade de desagradar.

Muitas vezes não há nada de errado com o ato praticado em si mesmo, mas foi perdida a oportunidade de se fazer melhor, de se fazer o bem feito. A diferença entre a crueldade, o azedume ou a doçura da vida está na sutil maneira de agir, capaz de amenizar as durezas da existência com pequenas colheradas de gentileza.
                                                                              publicado 24/08/2013

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